A bola rola nos campos do Senhor

Meu amigo Carlos Moraes – que já foi padre em outra encarnação, é jornalista brilhante desde os tempos da velha Realidade e será sempre gaúcho de Lavras do Sul, embora hoje se homizie num rancho em Boissucanga, dispensando diariamente fino trato à língua portuguesa na reinvenção de casos que renderão a coletânea 57 histórias de salvação pela bobagem – acaba de me enviar um texto que tenho de dividir com você.

Depois de ler, me diga se não há algo de divino no futebol.

Para a glória do Senhor

    Já eu durante os longos anos de seminário fui aprendendo, acho, as melhores maneiras de se relacionar com o rebanho, mas nos primeiros anos de padre vi que, às vezes, a melhor coisa que um pastor faz é  – entrar em campo.

   Aprendi isso nuns terços que a paróquia organizava nos bairros mais distantes. O mais temido deles era numa tal de Vila do Torrão. Seu Lúcio Reis, nosso homem por lá, logo no primeiro dia me confessou: “O povo aqui, senhor padre, não coopera. E, quando pode, anarquiza”.

    Esse era o quadro, e o terço naquela tarde era na casa da dona Zuleiquinha, uma baixinha de certa idade, mas bem militante. Depois da reza, o costume: levar em procissão a imagem da santa até a casa onde teria lugar o terço seguinte.

    Acontece  que o time local estava treinando num magnífico campo bem na frente da casa da dona Zuleiquinha  e justo  lá do outro lado ficava a casa do próximo terço.  Diplomático, sugeri:

    – Vamos dar a volta no campo, não temos pressa.

    Mas a baixinha retrucou no ato:

    – Não, senhor, eles que parem o jogo: o que a gente não pode é ter vergonha da nossa fé.

    E a breve procissão foi adentrando ao gramado, dona Zuleiquinha à frente de santa na mão, eu lá atrás acho que meio envergonhado da minha fé. A um apito do técnico, a turma parou de fato o jogo. Um lá que parecia ser o beque central ficou acompanhado a cena com bola embaixo do braço e um sorrisinho irônico na cara.

   E nós passando, passando. Acho que demorou assim umas vinte horas para chegar lá do outro lado.

   Na volta não quis nem saber. Abri o porta-malas do fusquinha da paróquia e fui catando as armas, que sempre ando com elas no carro – chuteiras, meias e uma camiseta velha do Internacional. A seguir,  pedi ao técnico uma oportunidade entre os reservas.

   Ele ficou bastante surpreso com a minha transformação, mas terminou concordando, meio assim.  Vi que todo mundo ficou meio assim. E percebi também que a torcida foi rapidamente aumentando. O padre vai jogar! O padre vai jogar!

   Eu, ao entrar em campo,  nem invoquei a santinha, fui direto a Javé, o Deus do Antigo Testamento que, esse sim, nas grandes batalhas era de chegar junto com seu povo. E acho que baixou sobre mim o espírito daquele Josué  que,   ao puro som das trombetas, ou no apito como hoje se diria,  tomou a cidade de Jericó.

    A verdade é que, naquela tarde, joguei demais.  Driblei, passei e finalizei como nunca. Uma hora lá enfiei uma caneta entre as pernas do tal becão irônico, dele até hoje andar perguntando por onde foi que aquela bola passou. Os titulares perderam 4 a 2. No fim, o técnico veio me cumprimentar:

     – O senhor, hein seu padre. Atravessa o campo rezando e volta omilhando.

    Os terços na Vila do Torrão não só foram ficando mais concorridos como um dia o técnico me convidou para participar mais vezes dos treinos. Aceitei na hora, para a glória do Senhor.

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